Repórter e fotógrafo reencontram menina retratada em reportagem depois de 18 anos
Ricardo Stefanelli | ricardo.stefanelli@zerohora.com.br
Ao ritmo do desembarque da edição dominical de Zero Hora nos pontos de venda ou nos lares, naquele entardecer de sábado, há duas semanas, pingavam mensagens na caixa de e-mails da Redação. Fazia frio no Estado, e milhares cumpriam o ritual de se agarrar ao jornal ainda quente pelas rotativas, como costuma fazer boa parte dos gaúchos nos sábados.
Pelo celular, também conectado à internet, era possível monitorar a chegada de pistas a conta-gotas sobre a menina sorridente destacada na página 2, retratada em reportagem de 1992, sobre abrigos de crianças. A maioria das mensagens era de esperança, numa corrente informal durante todo o fim de semana, pois muitos temiam pela sorte da menina da Febem.
Vídeo mostra a trajetória da menina que sorri:
Vídeo mostra a trajetória da menina que sorri:
Às 6h de segunda-feira, se iniciou o ritual de mensagens, numa procissão de sugestões, conselhos e orações até que, à noite, enquanto a Redação corria para fechar a edição do dia seguinte, o canto direito da tela piscou sob um título diferente de todos os demais:
– Você me achou.
O elo começava a se fechar.
Uma rede havia se formado, interligando funcionários da antiga Febem, boa parte deles atuando hoje na Fundação de Proteção Especial, a porção da instituição para abrigar crianças sem infrações. Dedicados como costumam ser com seus filhos emprestados, alguns identificaram as crianças da foto, em especial a sorridente Tatiane, de tiara na cabeça. Por um deles, a garota soube que, àquela altura, milhares de gaúchos estavam à procura de sua história. Um dos interessados era o leitor Marcel Esquivel Hoppe, hoje desembargador da 1ª Câmara Criminal de Porto Alegre, que em 1992 como juiz da Infância e da Juventude assanhou ZH a estimular as adoções.
– Passados 18 anos, acho que aquelas ações nos fizeram homens melhores – comentou o magistrado, um pioneiro na seara da infância e da juventude do Rio Grande.
Convoquei na manhã seguinte Mauro Vieira, o mesmo fotógrafo daquela primavera de 1992, quando conhecemos a menina que, enroscada em nossas pernas, tentava impedir a conversa com os monitores da casa ou com as demais crianças. Na semana passada, foi possível entender um pouco mais daquela doçura e carência: havia quatro semanas que a garota recolhida à Febem não recebia mais a visita semanal da mãe – e ninguém tinha coragem para explicar à criança o que é a morte.
A mensagem “Você me achou” não recebeu resposta imediata. Uma vírgula fora do lugar ou um verbo inadequado poderiam assustar. Era recomendável o contato pessoal, em Belém Novo, numa lotérica, como o recado da noite anterior sugeria. Uma conversa via correio eletrônico era fria demais para um contato adiado por quase duas décadas.
No centro do bairro rural, a porção mais interiorana da capital do Estado, surgiu uma lotérica. Na pequena loja forrada por cartões por todas as paredes foi possível ouvir, ao entrar, o diálogo entre uma atendente e um apostador no guichê.
– É tu naquela reportagem? – perguntava o homem em busca da sorte grande.
Identificamos o mesmo sorriso, os mesmos cabelos, agora sem a tiara e bem alinhados.
– Tu és Tatiane.
O sim veio com a cabeça. Dezoito anos depois, Tatiane voltava a nos abraçar e, como da outra vez, a nos descompor. Pelo reencontro, pela cara boa da menina transformada em mulher, pela mensagem da noite anterior que, abaixo do título, desanuviara o mau tempo:
“É impressionante se lembrar de mim depois de tanto tempo. Espero poder contar um pouco de minha trajetória, mas posso adiantar que o simples fato de eu ter me tornado a pessoa que sou hoje vale todo o resto”.
Conforme a história emergia, já na casa da jovem mulher, um duplo sentimento tomava conta da sala.
Tristeza pela trajetória dolorida. E serenidade emitida pela força de Rosemari, a professora estadual que resgatou a menina da Febem aos nove anos. Rose, docente enérgica e mãe bondosa, desde as primeiras aulas na escola estadual do bairro se impressionara com a história da menina que sorri. Rose sabia como havia sido a relação da garota com o pai, que ela perdera a mãe e, antes de chegar à Febem, passara seis meses hospitalizada. Uma atrofia dos joelhos foi agravada por passar boa parte dos dias sobre a cama, com a companhia da TV, no hotel de quartos escuros onde vivia, no centro da Capital.
– Eu gostava muito da novela Vamp – recorda-se.
Aos fins de tarde, Claudia Ohana e Nei Latorraca, os vampiros, eram os melhores parceiros da garota. Com afazeres no próprio hotel, a mãe biológica não tinha tempo para brincar. O pai, servidor público aposentado, pouco se fazia presente.
Na casa de Rose e Renato Faleiro, ex-funcionário de uma empresa avícola, a menina encontrou o sossego psicológico, pais especiais e três irmãos, filhos naturais do casal que a fazia renascer. A 3 de setembro de 1993, ao celebrar o primeiro aniversário em família, a garota deixou para trás o sobrenome Klagenberg de Mello:
– Este é o dia em que renasci – descreveu para o fotógrafo de ZH a festa de seus 10 anos.
Naquela data, já demonstrava todo o afeto aos carinhos sem fim dos novos pais, das duas irmãs e em especial do irmão três anos mais novo, Igor. Muito apegada ao garoto, seria submetida a um novo teste de resistência, 11 anos depois: o irmão com quem mais se identificara, sempre ao seu lado nas brincadeiras, adoeceu e morreu 21 dias depois do diagnóstico de leucemia. A mulher amadurecida a fórceps em hotéis lúgubres e lares da Febem precisava ajudar a recompor uma família de alma destroçada.
Foi quando Tatiane se interessou em pesquisar as origens. Apesar do pacto familiar firmado havia uma década para apagar o passado, chegara a hora de descobrir de onde vinha, como chegara ali. E por quê. O primeiro passo seria voltar ao hotel do centro da Capital onde nasceu. Precisava conversar com os que a conheceram bebê e viram sua mãe e pai brigarem. Necessitava recolher vestígios daqueles anos, mas a proprietária do local, agora uma senhora de idade, tratou de desidratar a esperança:
– Passa tanta gente por aqui, minha filha.
Tatiane era só mais uma.
À Justiça, requereu seu prontuário de adoção e soube, dias depois, que se tratava de um dos maiores calhamaços da 2ª Vara de Família e Sucessões, pois a insistência do pai em manter o poder familiar encorpara o processo a centenas de páginas. Os funcionários do Fórum se sentiam obrigados a fornecer a papelada, mas tentaram demovê-la, para poupá-la.
Obstinada pelo passado, Tatiane instalou-se no Fórum de modo a decorar linha por linha. Parou em dois capítulos especiais da história. O da trajetória da mãe, Maria, morta em outubro de 1992, vítima de enfisema pulmonar. Ligou para o telefone do Jardim da Paz, mas o não pagamento de aluguel provocara o recolhimento dos ossos. Nem havia onde depositar flores.
– Ficou a imagem de uma mulher doce, mas não lembro do rosto dela.
O segundo capítulo no qual ela estacionou os olhos falava do pai. Apesar dos relatos, queria perdoá-lo. Saiu em busca dele, mas encontrou-o no jazigo 342.349 do bloco 4 do Cemitério João XXIII e, pela lápide, soube que o homem morrera havia um mês.
Pela internet, procurou os filhos do pai biológico, cruzando nomes, sobrenomes, datas e locais de nascimento do pouco que sabia. Descobriu ter quatro meios-irmãos. Uma é falecida. Com os outros, conversa esporadicamente, quando ela telefona. Na linhagem materna, só localizou uma prima e uma tia, mas sentiu no ar uma preocupação por herança que a fez deixar este lado da família biológica para trás.
Depois de tudo saber, renasceu pela terceira vez, avalia hoje. Mais forte e liberta dos traumas, emancipação que nem as psicólogas conseguiram em quatro anos de sessões. Saiu da imersão ao passado mais convicta de que era filha de Rose e Renato, irmã de Ingrid, Sarah e do falecido Igor, cuja foto reluz na parede da boa residência de Belém Novo, três casas ao lado de onde construiu a sua, agora com o marido, o vigilante Gerson Lima, com quem se casou em outubro de 2006.
Para a cerimônia, os tios da Febem foram convidados. O servidor público Hélio Rafael Ortiz, a quem Tatiane chamava de “mãe” em seus tempos de casa-lar, esteve na janta de comemoração. Já com os primeiros cabelos brancos ainda trazia no rosto traços do jovem afetuoso de 22 anos enroscado pelas cinco crianças da foto publicada em novembro de 1992 à página 42 de Zero Hora.
Às vésperas de completar 25 anos, na próxima sexta-feira, Tatiane esboça planos para o futuro. Ela e o marido sonham com um filho.
– Família é tudo – ela diz.
Como ninguém, ela pode dizer isso.
ZERO HORA do dia 29 de agosto de 2010 (domingo)
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