“A grandeza de uma nação pode ser julgada pelo modo que
seus animais são tratados.”
Mahatma Gandhi
Está circulando na internet, em "e-mails" e "blogs", a notícia de que um deputado estadual do Rio Grande do Sul criou uma lei que permite a tortura e sacrifício de animais em rituais de religiões africanas e afro-brasileiras. Estas mensagens e “posts” em blogs são recentes (desde abril deste ano até junho), dando a entender que a referida lei é deste ano (2010) e que a discussão é recente.
Em verdade, a lei em questão é de 2004 (Lei Estadual nº 12.131/04) e já está em vigência, porém apenas no Rio Grande do Sul, Estado que conta com muitos praticantes e seguidores das diversas religiões de matriz africana (“Batuque”, Candomblé, Umbanda etc.). A lei foi sancionada em 2004 e foi responsável por uma alteração no Código Estadual de Proteção aos Animais do RS (Lei Estadual nº 11.915/03), inserindo o parágrafo único no artigo 2º, no sentido de que não são vedados os maus-tratos arrolados nos sete incisos do artigo quando se tratar do “livre exercício dos cultos e liturgias das religiões de matriz africana”.
A Lei nº 12.131/04 acabou sendo objeto de uma ação direta de inconstitucionalidade, movida pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, representado pelo Procurador-Geral de Justiça. A ação foi movida no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), sendo julgada pelo Tribunal Pleno, com a reunião de todos os Desembargadores daquele Tribunal (desembargadores são juízes que atuam no Tribunal de Justiça e não mais na primeira instância). No julgamento, o TJRS, por maioria, julgou improcedente a ação direta de inconstitucionalidade, entendendo que a Lei nº 12.131/04 é compatível com a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul. Foram 16 votos pela constitucionalidade e 10 votos contra, estes últimos entendendo que a referida lei fere a Constituição do Rio Grande do Sul.
A decisão do Pleno TJRS refere que a Lei nº 12.131/04 está em conformidade com a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, em dispositivos legais que foram obrigatoriamente reproduzidos da Constituição da República, por ordem expressa desta, o que ensejou a interposição de Recurso Extraordinário do Ministério Público do Rio Grande do Sul para ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), uma vez que, sendo a norma constante da Constituição Federal e sendo reproduzida obrigatóriamente pela Constituição do Estado do Rio Grande do Sul (art. 1º da CE do RS), pode o STF ser provocado a analisar a constitucionalidade da lei estadual frente à Constituição Federal. O Recurso Extraordinário do MPRS foi admitido e recebeu o número 494.601 no STF, encontrando-se os autos do processo com o Ministro Marco Aurélio, o Ministro Relator do recurso, para apreciação e prolação de relatório e voto no julgamento, que será feito juntamente com outros Ministros do Tribunal. Para acompanhar o andamento do processo basta acessar o “site” do STF e digitar o número do RE (494601):
http://www.stf.jus.br/portal/processo/pesquisarProcesso.asp
O autor do Código de Proteção gaúcho original, que não continha exceções aos maus-tratos, Deputado Estadual Manoel Maria (PTB), foi contrário à alteração proposta e considerou lamentável a decisão proferida pelo TJRS.
Esta lei de emenda do Código de Proteção dos Animais foi de iniciativa do Deputado Estadual Edson Portilho, do Partido dos Trabalhadores (PT), um professor de matemática ligado ao movimento contra a discriminação racial que, atualmente, é vereador no Município de Sapucaia do Sul, RS (http://www.cmsapucaiadosul.rs.gov.br/?pg=vereadores).
Conforme pesquisamos em alguns “sites” encontrados em breve consulta ao “Google”, o ex-deputado também atuou em projetos de lei a favor da inclusão dos afro-descendentes na educação, em cargos públicos e em propagandas do Poder Público, dentre outros assuntos. Além disso, atuou no Projeto de Lei nº 310/99, que dispõe sobre a inclusão no currículo escolar da Rede Estadual de Ensino Fundamental e Médio da disciplina de “História da contribuição da História do Negro no RS e no Brasil”, com a qual “se garantirá o conteúdo da História da África nos livros didáticos, abordando a 'história do negro no Brasil e na África e a Religiosidade de matriz Africana'”. Com tal projeto de lei, se pretende garantir a inclusão de matérias como as “Religiões Afro-Brasileiras” no currículo das Escolas de Ensino Fundamental e Ensino Médio públicas.
Na argumentação daqueles que defendem a nova lei e sua exceção encontramos opiniões no sentido de que não seria crime matar animal não-silvestre (doméstico ou domesticado), de que os seres humanos matam animais para sua alimentação e de que a liberdade de consciência, de crença e dos cultos religiosos é um direito fundamental e não pode ser limitado pelos “ecologistas de final de semana”, não havendo crueldade na matança dos animais e sim uma “morte limpa e rápida”.
Do outro lado, aqueles que são contrários à lei que emendou o Código de Proteção aos Animais invocam a inconstitucionalidade formal e material da lei, a violação aos “direitos dos animais e às normas ambientais", assim como a ética no trato com os animais.
Depreende-se, portanto, que a questão suscita uma delicada polarização de interesses e crenças, por isso mesmo tendo sido submetida ao Judiciário, que tem por missão pacificar as relações sociais e prevenir e compor os conflitos nessas relações. Há verdadeiro choque de direitos e interesses na questão, um conflito entre direitos fundamentais resguardados na Constituição da República e repetidos na Constituição do Estado do Rio Grande do Sul (art. 1º da CE).
Quando isso ocorre, a Ciência Jurídica, nos moldes atuais, recomenda a aplicação do princípio da proporcionalidade e a ponderação dos interesses em conflito, tendo por fundamento que só o direito fundamental à vida é absoluto, sendo os demais direitos passíveis de limitação em prol de outros interesses mais relevantes para o caso concreto, para a sociedade e em conformidade com o ordenamento jurídico, que é tido por uno e indivisível, pois tudo se harmoniza com o conjunto que é o Direito.
Assim, deve ser feita a delimitação dos direitos em colisão e, posteriormente, em processo de avaliação da proporcionalidade (o máximo benefício pelo menor “custo”, a relação entre fim e meio deve ser proporcional, sem excessos), a ponderação para se determinar qual interesse deve prevalecer sobre o outro por ser mais importante para chegar-se ao mais justo para as partes do conflito e para a coletividade, sua preservação e atendimento de suas aspirações.
No que se refere ao direito invocado pelos defensores dos sacrifícios, em geral é alegado que a alteração do Código de Proteção aos Animais visa a garantir o “direito de expressão livre de credo” e o “direito de religiosidade”. No nosso sentir, há equívoco na colocação. Proibir um seguidor de uma religião afro-brasileira de matar animais para oferecer a “orixás”, “santos” ou a seu Deus não é impedir a expressão de credo ou da religiosidade de alguém, mas sim limitar sua liturgia tendo em vista o que dispõe a lei. A expressão do credo, do culto ou de sua religiosidade está garantida, pois quem desejar pode falar, escrever, promover, aderir e freqüentar qualquer prática religiosa, não havendo censura e nem qualquer tipo de proibição de manifestação ou frequência a qualquer religião que seja. E cada um pode escolher a sua religião livre de preconceitos e penas, mudar sua crença religiosa ou até mesmo ser ateu, pois o Estado não pode obrigar ninguém a seguir determinada religião ou proibir alguém de segui-la.
O que há, de fato, na proibição de ritual religioso com a imolação de animais domésticos ou domesticados é a limitação da liturgia, que, segundo o Dicionário Aurélio (2009), significa “1. O culto público e oficial instituído por uma igreja; ritual”. Ritual, por sua vez, quer dizer “Relativo a rito(s), ou que tem o caráter regular ou sagrado deste(s). 2. Culto. 3. Liturgia. 4.Cerimonial, etiqueta”. Assim, o que há é uma interferência da lei na maneira como a pessoa irá praticar sua religiosidade, não no seu direito de praticá-la, exercitá-la, de crença, mas somente no que diz respeito à liturgia, que não pode ser ilimitada e se sobrepor aos direitos das outras pessoas, o que causaria o caos social, pois cada um faria o que bem entendesse, justificando-se nas liturgias religiosas para não ser responsável pelos danos causados ao próximo ou à sociedade como um todo.
Continua...